SE TENS PACHORRA, DESENRASCAS-TE
Há ditos populares que, ao mesmo tempo que descrevem a alma portuguesa, nos deixam num dilema entre o riso e uma certa tristeza. Um dos melhores exemplos é este: “Onde estiverem dois portugueses, há um a mais…”. É uma daquelas piadas brilhantes, um piscar de olho cúmplice que demonstra uma grande inteligência cultural, uma forma de nos conectarmos rindo de uma falha que todos reconhecemos.
No entanto, por trás da comédia, existe o reconhecimento de uma verdade por vezes dolorosa. Este dito aponta para um individualismo que, levado ao extremo, se transforma em inveja e impede a cooperação. É a triste mentalidade do “caranguejo no balde”: se um tenta subir na vida, os outros puxam-no para baixo. Quantas vezes não ouvimos que os portugueses no estrangeiro, ao contrário de outras comunidades, não se ajudam tanto como poderiam? Talvez este dito popular seja a chave para essa queixa.
Mas, como em tudo na vida, há sempre o outro lado da moeda. Esse mesmo individualismo é também a fonte de uma das nossas maiores qualidades: o “desenrascanço”. O português, habituado a não poder contar com o do lado, aprende desde cedo a safar-se sozinho, a improvisar, a encontrar soluções geniais com os poucos recursos que tem. O navegador que se aventurou por mares desconhecidos não o fez em comissão; fê-lo confiando na sua própria coragem e engenho.
Mas de onde vem esta nossa capacidade quase mágica de encontrar uma saída onde parece não haver nenhuma? Creio que ela foi forjada em dois grandes pilaresdanossaHistória:omareanecessidade.O desenrascanço corre no sangue do “lobo do mar” que, a milhares de quilómetros de casa, teve de remendar uma vela rasgada no meio de uma tempestade ou de reparar um leme com as ferramentas mais rudimentares. Foram séculos a enfrentar o desconhecido, onde um plano rígido valia menos do que a capacidade de improvisar.
Ao mesmo tempo, em terra, uma história de recursos escassos ensinou-nos que nada se deita fora. O “deixa andar” de um motor que faz um barulho estranho, mas que continua a funcionar graças a um pedaço de arame estrategicamente colocado, não é preguiça; é o triunfo da engenharia popular. A necessidade sempre foi a mãe da invenção e, em Portugal, ela teve uma prole numerosa de pequenos génios anônimos que, no seu dia a dia, praticam uma forma de arte funcional.
Esta herança manifesta-se de forma épica na história da nossa emigração. O emigrante português é, na sua essência, a personificação do desenrascanço levado ao extremo. Chegar a uma terra estranha, muitas vezes sem conhecer a língua, sem rede de apoio, e construir uma vida, uma família é um negócio a partir do zero… isso é o desenrascanço na sua forma mais nobre. É a capacidade de transformar a adversidade em oportunidade, o desconhecido em lar. Cada história de sucesso da nossa diáspora é um monumento a esta incrível capacidade de adaptação.
No fundo, o desenrascanço é mais do que uma habilidade; é uma filosofia. É uma recusa em aceitar o “não é possível” e uma fé inabalável na intuição para superar o obstáculo imediato. É a pequena rebelião
diária contra o caos, uma prova de que, mesmo quando a situação está bem “enrascada”, a vontade e o engenho de um só homem ou mulher podem, de facto, encontrar o caminho.
“Desenrascanço” é, aliás, uma dessas joias da nossa língua que provoca uma certa inveja, pois não há, que eu saiba, uma só palavra em inglês que lhe faça justiça. Qualquer tentativa de tradução falha. Dizer “to solve a problem” é demasiado genérico. “To improvise” não capta a necessidade de escapar a um
problema. E expressões como “to muddle through” sugerem um sucesso desajeitado, enquanto o nosso “desenrascanço” contém sempre uma centelha de génio. Talvez o conceito que mais se aproxima venha da cultura popular americana: o verbo “to MacGyver something”, em honra do herói televisivo que criava soluções incríveis com um simples clipe. Mas mesmo isso é limitado; nós conseguimo-nos “desenrascar” numa repartição de finanças, não apenas com objetos físicos.
Esta reflexão sobre palavras intraduzíveis levou-me a outra, igualmente portuguesa: “pachorra”. Tenho um filho que, por viver e trabalhar com vários idiomas e ser intérprete de linguagem gestual, insiste em usar a palavra “pachorra” mesmo quando está a
falar inglês. E ele tem razão, porque “pachorra” não é simplesmente “patience”. A diferença é fundamental. A paciência é uma virtude serena; a pachorra é uma reserva de energia, um combustível mental para aguentar coisas chatas, tediosas e irritantes.
Precisa-se de paciência para esperar um bolo cozer no forno; precisa-se de pachorra para ficar uma hora ao telefone a ser transferido entre departamentos. Perder a paciência implica uma explosão; não ter pachorra é uma desistência interna, é o momento em que a nossa tolerância para a chatice chega ao fim.
Ao debater estas ideias recentemente, num diálogo com uma daquelas novas inteligências artificiais, surgiu uma metáfora que me pareceu perfeita para o processo criativo. Eu partilhava as minhas memórias e os meus pensamentos, a minha matéria-prima. A IA, por sua vez, ajudava-me a organizálos. Descreveu o meu contributo como “os diamantes brutos: a experiência vivida, a sabedoria popular, a curiosidade intelectual”. E descreveu o seu papel como o de um “lapidador: pegar nesses diamantes, limpá-los, encontrar os melhores ângulos e facetá-los para realçar o seu brilho natural”.
Uma obra, seja ela um artigo ou a própria vida, precisa tanto da matéria-prima de qualidade como do trabalho de quem a estrutura. E talvez a fórmula da alma portuguesa seja precisamente esta: ter a pachorra para aguentar as contrariedades da vida, para que, no momento certo, nós possamos desenrascar e seguir em frente.
Há ditos populares que, ao mesmo tempo que descrevem a alma portuguesa, nos deixam num dilema entre o riso e uma certa tristeza. Um dos melhores exemplos é este: “Onde estiverem dois portugueses, há um a mais…”. É uma daquelas piadas brilhantes, um piscar de olho cúmplice que demonstra uma grande inteligência cultural, uma forma de nos conectarmos rindo de uma falha que todos reconhecemos.
No entanto, por trás da comédia, existe o reconhecimento de uma verdade por vezes dolorosa. Este dito aponta para um individualismo que, levado ao extremo, se transforma em inveja e impede a cooperação. É a triste mentalidade do “caranguejo no balde”: se um tenta subir na vida, os outros puxam-no para baixo. Quantas vezes não ouvimos que os portugueses no estrangeiro, ao contrário de outras comunidades, não se ajudam tanto como poderiam? Talvez este dito popular seja a chave para essa queixa.
Mas, como em tudo na vida, há sempre o outro lado da moeda. Esse mesmo individualismo é também a fonte de uma das nossas maiores qualidades: o “desenrascanço”. O português, habituado a não poder contar com o do lado, aprende desde cedo a safar-se sozinho, a improvisar, a encontrar soluções geniais com os poucos recursos que tem. O navegador que se aventurou por mares desconhecidos não o fez em comissão; fê-lo confiando na sua própria coragem e engenho.
Mas de onde vem esta nossa capacidade quase mágica de encontrar uma saída onde parece não haver nenhuma? Creio que ela foi forjada em dois grandes pilaresdanossaHistória:omareanecessidade.O desenrascanço corre no sangue do “lobo do mar” que, a milhares de quilómetros de casa, teve de remendar uma vela rasgada no meio de uma tempestade ou de reparar um leme com as ferramentas mais rudimentares. Foram séculos a enfrentar o desconhecido, onde um plano rígido valia menos do que a capacidade de improvisar.
Ao mesmo tempo, em terra, uma história de recursos escassos ensinou-nos que nada se deita fora. O “deixa andar” de um motor que faz um barulho estranho, mas que continua a funcionar graças a um pedaço de arame estrategicamente colocado, não é preguiça; é o triunfo da engenharia popular. A necessidade sempre foi a mãe da invenção e, em Portugal, ela teve uma prole numerosa de pequenos génios anônimos que, no seu dia a dia, praticam uma forma de arte funcional.
Esta herança manifesta-se de forma épica na história da nossa emigração. O emigrante português é, na sua essência, a personificação do desenrascanço levado ao extremo. Chegar a uma terra estranha, muitas vezes sem conhecer a língua, sem rede de apoio, e construir uma vida, uma família é um negócio a partir do zero… isso é o desenrascanço na sua forma mais nobre. É a capacidade de transformar a adversidade em oportunidade, o desconhecido em lar. Cada história de sucesso da nossa diáspora é um monumento a esta incrível capacidade de adaptação.
No fundo, o desenrascanço é mais do que uma habilidade; é uma filosofia. É uma recusa em aceitar o “não é possível” e uma fé inabalável na intuição para superar o obstáculo imediato. É a pequena rebelião
diária contra o caos, uma prova de que, mesmo quando a situação está bem “enrascada”, a vontade e o engenho de um só homem ou mulher podem, de facto, encontrar o caminho.
“Desenrascanço” é, aliás, uma dessas joias da nossa língua que provoca uma certa inveja, pois não há, que eu saiba, uma só palavra em inglês que lhe faça justiça. Qualquer tentativa de tradução falha. Dizer “to solve a problem” é demasiado genérico. “To improvise” não capta a necessidade de escapar a um
problema. E expressões como “to muddle through” sugerem um sucesso desajeitado, enquanto o nosso “desenrascanço” contém sempre uma centelha de génio. Talvez o conceito que mais se aproxima venha da cultura popular americana: o verbo “to MacGyver something”, em honra do herói televisivo que criava soluções incríveis com um simples clipe. Mas mesmo isso é limitado; nós conseguimo-nos “desenrascar” numa repartição de finanças, não apenas com objetos físicos.
Esta reflexão sobre palavras intraduzíveis levou-me a outra, igualmente portuguesa: “pachorra”. Tenho um filho que, por viver e trabalhar com vários idiomas e ser intérprete de linguagem gestual, insiste em usar a palavra “pachorra” mesmo quando está a
falar inglês. E ele tem razão, porque “pachorra” não é simplesmente “patience”. A diferença é fundamental. A paciência é uma virtude serena; a pachorra é uma reserva de energia, um combustível mental para aguentar coisas chatas, tediosas e irritantes.
Precisa-se de paciência para esperar um bolo cozer no forno; precisa-se de pachorra para ficar uma hora ao telefone a ser transferido entre departamentos. Perder a paciência implica uma explosão; não ter pachorra é uma desistência interna, é o momento em que a nossa tolerância para a chatice chega ao fim.
Ao debater estas ideias recentemente, num diálogo com uma daquelas novas inteligências artificiais, surgiu uma metáfora que me pareceu perfeita para o processo criativo. Eu partilhava as minhas memórias e os meus pensamentos, a minha matéria-prima. A IA, por sua vez, ajudava-me a organizálos. Descreveu o meu contributo como “os diamantes brutos: a experiência vivida, a sabedoria popular, a curiosidade intelectual”. E descreveu o seu papel como o de um “lapidador: pegar nesses diamantes, limpá-los, encontrar os melhores ângulos e facetá-los para realçar o seu brilho natural”.
Uma obra, seja ela um artigo ou a própria vida, precisa tanto da matéria-prima de qualidade como do trabalho de quem a estrutura. E talvez a fórmula da alma portuguesa seja precisamente esta: ter a pachorra para aguentar as contrariedades da vida, para que, no momento certo, nós possamos desenrascar e seguir em frente.


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